395px

Crossed By Me

Jô Soares

Cruzou Por Mim

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).

Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
E' estar ao lado da escala social,
E' não ser adaptável às normas da vida,
'as normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser juiz do supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se ha uma razão exterior a ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
E' ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
E' ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um dostoiewski ou um gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do álvaro de campos!
Tão isolado na vida! tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco aquele pobre que não era pobre que tinha olhos tristes por profissão.

Coitado do álvaro de campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!

Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! sou lúcido.

Crossed By Me

Crossed by me, came to me, on a downtown street
That poorly dressed man, a beggar by profession written all over his face,
Who sympathizes with me and I sympathize with him;
And reciprocally, in a wide, overflowing gesture, I gave him everything I had
(except, of course, what was in the pocket where I keep more money:
I'm not stupid or a Russian novelist, dedicated,
And romanticism, yes, but slowly...).

I feel sympathy for all those people,
Especially when they don't deserve sympathy.
Yes, I am also a vagabond and a beggar,
And I am so also because of my fault.
Being a vagabond and a beggar is not being a vagabond and a beggar:
It's being on the side of the social scale,
It's not being adaptable to the norms of life,
To the real or sentimental norms of life -
Not being a supreme judge, a certain employee, a prostitute,
Not being genuinely poor, an exploited worker,
Not being sick with an incurable disease,
Not being thirsty for justice, or a cavalry captain,
Not being, in short, those social people from novels
Who are tired of letters because they have a reason to cry tears,
And rebel against social life because they have a reason to suppose that.

No: anything but being right!
Anything but caring about humanity!
Anything but giving in to humanitarianism!
What good is a feeling if there is a reason outside of it?

Yes, being a vagabond and a beggar, like I am,
Is not being a common vagabond and beggar:
It's being isolated in the soul, and that's what being a vagabond is,
It's having to ask the days to pass, and leave us, and that's what being a beggar is.

Everything else is as stupid as a Dostoevsky or a Gorky.
Everything else is being hungry or not having clothes to wear.
And even if that happens, it happens to so many people
That it's not even worth feeling sorry for those it happens to.

I am truly a vagabond and beggar, that is, in a metaphorical sense,
And I am rolling in a great charity for myself.

Poor Álvaro de Campos!
So isolated in life! so depressed in sensations!
Poor him, stuck in the armchair of his melancholy!
Poor him, who with tears (authentic) in his eyes,
Today gave, in a wide, generous and Muscovite gesture,
Everything he had, in the pocket where that poor man who wasn't poor had little, with sad eyes by profession.

Poor Álvaro de Campos, whom no one cares about!
Poor him who pities himself so much!

And, yes, poor him!
Even more poor him than many who are vagabonds and wander,
Who are beggars and beg,
Because the human soul is an abyss.

I know. Poor him!
How good it would be to revolt in a rally within my soul!

But I'm not even stupid!
I don't even have the defense of being able to have social opinions.
I have no defense at all: I am lucid.

Don't try to convert me to conviction: I am lucid!
I've already said: I am lucid.
No aesthetics with a heart: I am lucid.
Damn it! I am lucid.

Escrita por: Alvaro De Campos